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Música e superação

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Estamos inaugurando nosso blog e o pessoal me incentivou a dar o pontapé inicial. Para isso, resolvi dar um testemunho sobre o que a música pode fazer para mudar a vida de uma pessoa. Sei que existem muitas histórias parecidas, mas escolhi esta para compartilhar com vocês.

Conheci o Julio Cesar lá pelo ano 2000, quando morávamos no mesmo condomínio na Granja Vianna, na altura do km 28 da Rodovia Raposo Tavares, longe pra caramba! O Julio era o professor de futebol do condomínio, e eu, pai do Daniel, garoto de 6 anos apaixonado pela bola. Coloquei o menino na escola e desse modo, me aproximei do Julio Cesar e fiquei conhecendo um pouco de sua personalidade, típica de uma pessoa que entra com a alma e o coração em tudo o que faz.

Na época, ele já tinha uma deficiência auditiva, que compensava com o uso de aparelho, mas acho que já não escutava quase nada. E a molecada não perdoava!

Quando chegava do trabalho, ia assistir ao treino e, além de perceber que o Daniel levava jeito para a coisa, via que o Julio Cesar não se preocupava apenas em ensinar os fundamentos do esporte, a parte técnica, tática e essas coisas que a gente escuta nos programas esportivos. Na verdade, sua maior preocupação era com a formação do caráter das crianças.

Ele exercia outras atividades nesse sentido, como professor de educação física da rede pública e em trabalhos com deficientes auditivos por meio do esporte. Comandava a fundação que ele mesmo criou, chamada Jogadas da Vida, voltada para a inclusão. Enfim, era um cara sério e dedicado.

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Julio Cesar foi jogador de futebol profissional e estreou aos 19 anos no grande time do Corinthians de 82/83, aquele da Democracia Corinthiana, que tinha Sócrates, Casagrande, Vladimir, Zé Maria e tantos outros craques. Chegou a jogar na Europa por 5 anos, mas acabou abreviando a carreira por causa do progresso da deficiência auditiva.

No final de 2001, a vida me pregou uma peça, com meu filho Daniel contraindo uma doença séria aos 7 anos de idade. Minha esposa Regina e eu vivemos aquela experiência que ninguém quer passar.

Foram quase 18 meses de trabalho da equipe multidisciplinar para colocar o menino, que antes da enfermidade estava alfabetizado e tocando piano, em pé e articulando algumas frases compreensíveis. E, assim, ele voltou para a escolinha do Julio.

Não era o mesmo craque promissor que lembrava o Romário na pequena área, mas continuava valente e brigador: tinha no currículo uma superação de 90 dias em estado de coma e já começava a se preparar para a luta contra as adversidades que a vida reserva para as pessoas que se desviam dos referidos padrões de “normalidade”.

A vida seguiu seu curso para mim e minha família e, em 2004, as preces da Regina foram ouvidas e acabamos nos mudando para São Paulo. Fim da qualidade de vida na Granja Vianna.

Afinal

Se alguém leu esse texto até aqui, deve estar se perguntando: “que raios de história é essa e o que tem a ver com a Fritz Dobbert? Nada de pianos, nem de música!

Pois bem! Em 2014, o Julio Cesar me procurou para dizer que tinha começado a estudar piano e que já estava completamente surdo.

Confesso que não levei aquilo muito a sério, mas marcamos um encontro e ele veio à fábrica falar sobre o que estava fazendo. Contou que seu aprendizado estava sendo possível graças à memória musical que guardava dos tempos em que tocava violão e que, em sua época de jogador de futebol na Europa, tinha conhecido e se apaixonado pelas obras dos grandes compositores, como Beethoven, Chopin, Liszt e outros.

Já era um bom começo. Um passo importante foi convencer o professor Maurício Bonanno a aceitar o desafio de ensinar um surdo a tocar piano, com o acréscimo de poder incluir essa façanha nas palestras motivacionais que ministrava em empresas.

A princípio, Julio Cesar começou tocando peças de que gostava, como “Sonata ao Luar”, de Beethoven, o grande compositor alemão, que, surdo como ele, dizem ter composto a música para uma moça cega que tinha o grande desejo de ver o luar. Aprendeu também “Somewhere in Time”, o tema de “Romeu e Julieta” e algumas músicas da bossa nova que um dia tinha tocado no violão.

Mas sua busca pela superação não parou por aí. Dormia sonhando escutar uma música que o perseguiu até a sua realização. Era uma sinfonia que viria a compor para contar a trajetória da sua vida. Em três movimentos, como os clássicos tradicionais. “Que cara maluco”, pensei! Mas acreditei e o apoiei da forma que pude, afinal, o esforço era todo dele. Com seu jeito persuasivo, conseguiu que o maestro Rodrigo Vitta fizesse os arranjos para a sua obra, que já vinha trabalhando há mais de 2 anos.

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Além de estudar de 4 a 6 horas diárias em seu piano vertical Fritz Dobbert, ele vinha à fábrica para ensaiar em um piano de cauda. Por sua opção, tocava por muitas horas no meio do barulho de serras, furadeiras… E daí? Brincalhão, dizia para mim: “não esquenta, você se esquece que sou surdo?”. Fiquei impressionado com a determinação dele, o andamento e a potência correta que imprimia nas teclas. Ele tocava com o coração! Sentia as vibrações do piano.

Na noite de 19 de maio de 2016, Julio Cesar apresentou no MuBE, em São Paulo, o concerto para piano de sua autoria, intitulado Jogadas da Vida, acompanhado da Camerata Acadêmica FIAM-FAAM, sob arranjo e regência do maestro Rodrigo Vitta. Estive lá e me emocionei.

Estou na direção da Fritz Dobbert há 30 anos e em contato com a diversidade do universo musical, mas naquele momento tive o perfeito entendimento do que a música é capaz de fazer com um indivíduo. Ela tem a capacidade de transformar pessoas. Fazê-las felizes e realizadas.

Eu sei que muitas pessoas pensam no piano como um instrumento para virtuoses. Mas lá estava o Julio, feliz no palco, solando ao piano e desconstruindo o paradigma. No fundo, o que importa é a realização pessoal.

Admiro pianistas que conseguem alcançar o virtuosismo. De fato, é preciso talento e muita dedicação para chegar lá. Mas o que dizer para aqueles que estão começando? E para os pais que estão indecisos em incentivar os seus filhos a iniciarem o aprendizado musical? Apenas isso: a música tem o poder de ajudá-los a transpor dificuldades que a vida impõe, mas, acima de tudo, poderá fazê-los pessoas melhores e mais felizes.

Celio Bottura

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4 thoughts to “Música e superação”

  1. Esta história, faz com que olhemos para nossas vidas… e com o toque forte, suave, lento, rápido das teclas, sonhar que tudo pode mudar e para melhor!

  2. Agradeço demais ao Célio por todo apoio que vem me dando nesta etapa de minha vida, quando tenho me dedicado ao piano e a compor, mesmo sem escutar. Música se faz com a alma e o coração e é necessário para tanto, ter uma sensibilidade e conhecimento musical desenvolvidos.
    Entretanto, posso dizer com toda certeza que a Fritz Dobbert foi primordial para que eu apresentasse este Concerto no MUBE.

    Julio Cesar de Souza

  3. Belíssimo testemunho…..histórias assim nos fazem ter admiração e respeito por essa arte tão bonita!
    Parabéns pelo blog…….faço esse comentário no seu primeiro post, porém agradeço por todos os demais, pois fui lendo do fim pro começo.
    Parabéns!!!

    1. Obrigado pelo reconhecimento Geyson! Toda semana tem novidade no blog. E se você quiser ler mais alguns conteúdos, temos e-books em nosso site.

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