Glenn Gould, um dos pianistas mais destacados e controversos do século 20, foi um menino prodígio. Nasceu em 25 de setembro de 1932 em Toronto, no Canadá, dentro de um lar protestante. O nome de origem era Gold, mas, temendo que ele fosse confundido com um judeu, a família o mudou logo após seu nascimento, para protegê-lo da onda de antissemitismo que havia dominado o Canadá na década de 1930.
Depois de aprender piano com sua mãe, Gould tocou em público pela primeira vez aos cinco anos de idade, juntando-se à família no palco para tocar em um culto, em frente a uma congregação de cerca de duas mil pessoas.
Aos 10 anos, foi matriculado no Royal Conservatory of Music, onde estudou piano com Alberto Guerrero, órgão com Frederick C. Silvester, e teoria musical com Leo Smith. Pouco depois, machucou as costas em uma queda às margens do lago Simcoe, o que levou seu pai a construir uma cadeira de altura ajustável para que o pequeno pudesse estudar sentando-se bem baixo em relação ao teclado. Isso permitiu que ele “puxasse” as teclas em vez de pressioná-las, uma ideia técnica de seu professor no Conservatório, Alberto Guerrero (Gould usou essa cadeira pelo resto de sua vida e a levou a quase todos os lugares em que se apresentou).
Gould passou no exame final do Conservatório em piano aos 12 anos, alcançando notas mais altas de que qualquer candidato, alcançando a posição profissional de pianista nessa idade. Um ano depois, passou nos exames teóricos escritos, qualificando-se para um diploma de Associate of the Toronto Conservatory of Music. Aos 13 anos, fez sua primeira apresentação com orquestra, interpretando o primeiro movimento do Concerto Nº 4 de Beethoven com a Toronto Symphony Orchestra. Seu primeiro recital solo ocorreu em 1947, e seu primeiro recital na rádio CBC, em 1950. Este foi o começo da longa associação de Gould com o rádio e a gravação. Em 1953, fundou o grupo de câmara do Festival Trio com o violoncelista Isaac Mamott e o violinista Albert Pratz.
Dois anos mais tarde, Gould foi contratado pela Columbia Records, que lhe propôs a gravação das 30 Variações Goldberg de Johann Sebastian Bach, pelas quais poucos pianistas da época se interessavam. A gravação, feita em junho de 1955 em Nova York, tornou-se rapidamente um sucesso, batendo recordes de vendas até hoje ainda não alcançados para música clássica para piano solo, sendo ainda uma referência de interpretação da obra. Nunca a técnica contrapontística de Bach soara com tanta clareza e dinamismo.
Em 1957, em plena era da Guerra Fria, Gould realizou uma turnê pela União Soviética, tornando-se o primeiro norte-americano a tocar lá desde a Segunda Guerra Mundial. Seus shows incluíram Bach, Beethoven e a música serial de Schoenberg e Berg, que havia sido suprimida na União Soviética durante a era do realismo socialista.
Gould fez sua estreia em Boston em 1958, tocando para o Peabody Mason Concert Series. Em 31 de janeiro de 1960, fez sua estreia na televisão americana na série Ford Presents da CBS, apresentando o Concerto Nº 1 em Ré menor (BWV 1052), de J. S. Bach, com Leonard Bernstein dirigindo a Filarmônica de Nova York. No entanto, o pianista estava convencido de que a instituição do concerto público não era apenas um anacronismo, mas uma “força do mal”, argumentando que a performance pública se transformou em uma espécie de competição, com uma plateia não empática (musicalmente ou não) ávida principalmente pela possibilidade de o artista errar ou não atender às expectativas críticas. Ele expôs essa doutrina no “GPAADAK” (Gould Plan for the Abolition of Applause and Demonstrations of All Kinds), o Plano Gould para a Abolição dos Aplausos e Demonstrações de Todos os Tipos.
Em 10 de abril de 1964, Gould fez sua última apresentação pública, tocando em Los Angeles, no Wilshire Ebell Theatre, interpretando a Sonata para piano Nº 30 de Beethoven, trechos de A Arte da Fuga, de J. S. Bach, e a Sonata Nº 3 para piano de Paul Hindemith. Com essa decisão, Gould realizou menos de 200 shows ao longo de sua carreira, dos quais menos de 40 fora do Canadá. Passou então a se concentrar em outros interesses, como gravações, textos, transmissões de rádio e televisão, documentários e composição, ainda que tenha produzido poucas peças.
Uma das razões de Gould abandonar a performance ao vivo foi sua preferência estética pelo estúdio de gravação, onde, em suas palavras, ele desenvolveu um “caso de amor com o microfone”. No estúdio, ele podia controlar todos os aspectos do produto musical final, selecionando partes de várias tomadas.
Gould era amplamente conhecido por seus hábitos incomuns. Entre eles, costumava gemer ou cantarolar enquanto tocava, e seus engenheiros de áudio nem sempre conseguiam excluir sua voz das gravações. Gould alegou que seu canto era inconsciente e aumentou proporcionalmente à sua incapacidade de produzir a interpretação pretendida a partir de um determinado piano. É provável que esse hábito tenha se originado por ele ter sido ensinado por sua mãe a “cantar tudo o que tocava”. Além disso, fazia movimentos corporais peculiares enquanto tocava e insistia em ter controle absoluto de todos os aspectos do ambiente de gravação, a começar pela a temperatura do estúdio, regulada com precisão e extremamente quente.
O piano tinha que estar a certa altura e levantado por blocos de madeira, se necessário. Era avesso ao frio e usava roupas pesadas, incluindo luvas, mesmo em lugares quentes. Odiava ser tocado e, mais tarde, limitou o contato pessoal, contando com o telefone e as letras para a comunicação. Em uma visita a Nova York, em 1959, Gould foi recebido pelo principal técnico de piano da época, William Hupfer, com um tapa nas costas. Gould ficou chocado com isso e reclamou de dor, falta de coordenação e fadiga por causa do incidente.
Embora fosse assumidamente hipocondríaco Gould sofreu muitas dores e doenças, desde pressão alta (que em seus últimos anos registrou em forma de diário) até a segurança de suas mãos: ele raramente cumprimentava as pessoas com apertos de mão. A lesão na coluna que sofreu no início da vida levou os médicos a prescreverem, geralmente de forma independente, uma variedade de analgésicos, ansiolíticos e outros medicamentos. Também tomava antipsicóticos e antidepressivos, provavelmente culpados pela deterioração de seu estado mental.
O comportamento de Gould sugeriu a vários especialistas o diagnóstico de autismo. Também há especulações de que pode ter tido transtorno bipolar, porque às vezes passava vários dias sem dormir, tinha aumentos extremos de energia, dirigia de forma imprudente e sofreu episódios depressivos profundos. Em 27 de setembro de 1982, dois dias após seu aniversário de 50 anos, após uma forte dor de cabeça, Gould sofreu um acidente vascular cerebral que paralisou o lado esquerdo do corpo. Mesmo internado, sua condição deteriorou-se rapidamente e, em 4 de outubro, perante evidências de danos cerebrais, seu pai decidiu que ele deveria ser retirado do suporte à vida.
A obra de Glenn Gould
Gould adquiriu reputação internacional graças às interpretações bastante originais, particularmente das obras de Bach. Seu modo de execução, praticamente desprovido de legato, quase sem utilizar os pedais, constituíam uma marca personalíssima. Com caráter diferenciado e extremamente antagônico às interpretações da época, as gravações de Glenn Gould para as Variações Goldberg, de Bach, são consideradas um marco na música ocidental do século 20. Além delas, outras atingiram o patamar de obras-primas, como as gravações de Das Marienleben, de Paul Hindemith; das Toccatas, de Bach, assim como Preludes. Fughettas & Fugues; as Sonatas de Haydn, e as Balladas Op. 10 e as Rhapsodies Op. 79 de J. Brahms. Gould interpretou todas as composições para instrumentos de teclas de Bach, todas as peças para piano de Arnold Schönberg, assim como obras de Beethoven, Mozart, Brahms, Ravel, Scriabin e Richard Strauss.
Escreveu peças radiofônicas, diversos materiais para a rádio canadense e várias composições. Entre 1972 e 1982, Gould produziu sete documentários, entre os quais “Os Caminhos da Música” em 1974, que seria reintitulado depois como “Glenn Gould, o alquimista”.