A fronteira entre o erudito e o popular, por vezes fortemente demarcada na história, foi diluída frequentemente por músicos e compositores que ousaram se entregar aos dois gêneros. No Brasil, são muitos os exemplos daqueles que trafegaram pelos dois mundos unindo o melhor de ambos em prol da música. Um dos mais destacados foi Radamés Gnattali, pianista, compositor, arranjador e maestro que atuou em praticamente todos os terrenos: deixou vasta obra sinfônica e camerística e foi um dos mais importantes arranjadores brasileiros, com pelo menos cinco décadas de atuação em música popular.
Radamés Gnattali nasceu em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, em 27 de janeiro de 1906. Filho mais velho de um casal de melômanos, teve o nome inspirado por um personagem da ópera Aída, de Giuseppe Verdi. Seu pai, o imigrante italiano Alessandro Gnattali, trocou a profissão de operário pela de músico. Sua mãe, Adélia Fossati, foi quem lhe deu as primeiras lições de piano, aos 6 anos de idade. Se não bastasse, sua prima, Olga Fossati, lhe deu aulas de violino.
Aos 14 anos, Radamés ingressou no Instituto de Belas Artes de Porto Alegre, onde se formou pianista em 1924, sob a orientação de Guilherme Fontainha. Na adolescência, ganhou a vida tocando piano em cinemas e bailes da capital gaúcha, além de participar de serestas e blocos carnavalescos, tocando cavaquinho e violão. Dedicou-se também ao violino, que trocou pela viola para integrar o quarteto de cordas Henrique Oswald, em que atuou durante quatro anos.
No fim da década de 1920, com a pretensão de se tornar concertista, decidiu se mudar para o Rio de Janeiro, onde estudou com Agnelo França na Escola Nacional de Música. Ali, deu um recital no Instituto Nacional de Música (INM) com repertório de enorme dificuldade, que incluía a Sonata em Si menor, de Liszt, o que disseminou sua fama de grande virtuose. Após uma tentativa frustrada de ingressar no corpo docente do INM, passou a estudar também composição e orquestração, e, para se manter, tocava viola e piano em orquestras de teatro e da Rádio Clube do Brasil, além de integrar o quarteto do Hotel Central. No início da década de 1930, apresentou ao público suas primeiras composições, todas dedicadas ao chamado repertório erudito.
Dois anos mais tarde, recém-casado, aproximou-se da música popular como meio de subsistência, trabalhando como arranjador e copista, com a incumbência de transportar para partitura o jeito de tocar dos “pianeiros” da editora musical Casa Vieira Machado. Na mesma época, passou a reger e compor para o teatro musicado e gravou seus primeiros choros, com o pseudônimo Vero (uma homenagem a Vera, sua esposa, e uma forma de evitar o preconceito ocultando sua relação com a música popular).
Graças à facilidade que possuía como intérprete atuou nas recém-criadas rádios comerciais, como a Rádio Clube do Brasil e a Rádio Mayrink Veiga, e na indústria fonográfica, como músico. De pianista passou a arranjador e, em 1939, substituiu Pixinguinha na gravadora RCA Victor.
A contratação de Gnattali pela Rádio Nacional, a primeira a dedicar-se exclusivamente à música brasileira, em 1936, pode ser considerado um marco na história da música popular brasileira. Foi ali que suas inovações se tornaram marcantes: introduziu cordas nas canções românticas e metais nos sambas, dando a eles um caráter sinfônico. A formação como compositor clássico foi fundamental para esse enriquecimento e seus arranjos passaram a ser cobiçados pelos principais cantores da época.
São dele as partes orquestrais de gravações célebres como a do cantor Orlando Silva para a “Carinhoso”, de Pixinguinha e João de Barro, ou as gravações originais de “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, e “Copacabana”, imortalizada na voz de Dick Farney. Durante trinta anos Radamés Gnattali trabalhou como arranjador na Rádio Nacional e estima-se que tenha escrito mais de 10 mil arranjos. Com isso, desistiu da carreira de concertista, mas compunha música erudita nas horas vagas e as apresentava em concerto.
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Em 1949, formou o Quarteto Continental com Zé Menezes (guitarra), Pedro Vidal Ramos (contrabaixo) e Luciano Perrone (bateria). O grupo foi ampliado para sexteto em 1960, com a entrada de Aída Gnattali (piano), sua irmã, e Chiquinho do Acordeon. O conjunto teve grande importância na divulgação da música popular brasileira pela Europa, por onde realizou uma turnê.
Na década de 1950, foi responsável pela música do clássico Tico-Tico no Fubá, drama cinematográfico de Adolfo Celi sobre a vida de Zequinha de Abreu, e colaborou com o cineasta Nelson Pereira dos Santos e com o sambista Zé Ketti em filmes importantes como Rio Zona Norte (1957) e Rio 40 Graus (1955), dando início à produção de trilhas para diversas películas nacionais, como Eles Não Usam Black-Tie (1981), de Leon Hirszman, Perdoa-Me por Me Traíres (1983), de Braz Chediack, e O Homem do Sputnik (1959), de Carlos Manga, entre muitas outras.
Em 1953, Gnattali gravou uma séria de obras de Ernesto Nazareth em disco, retomando o trabalho em piano solo. Durante as décadas de 1960 e 1970, com o declínio do rádio como meio de comunicação de massa e o consequente desaparecimento das orquestras radiofônicas, o compositor voltou a se dedicar à música erudita. Sua obra é vasta e nela se destacam principalmente os concertos e obras sinfônicas.
Escreveu uma quantidade enorme de concertos para seus amigos, como os violonistas Garoto, Dilermando Reis, Laurindo Almeida e José Menezes, o violoncelista Iberê Gomes Grosso e os violinistas Oscar Borgerth e Romeu Ghipsman. Para Jacob do Bandolim escreveu a Suíte Retratos para bandolim e orquestra de cordas e para Joel Nascimento o Concerto para bandolim e cordas. Chiquinho do Acordeon mereceu seu Concerto para acordeon, tumbadora e orquestra e Edu da Gaita o Concerto para harmônica e orquestra.
Também escreveu três concertos para piano e orquestra e a série Brasilianas, em que a riqueza da música brasileira é demonstrada em formações variadas, que vão desde piano e violão solo até grande orquestra sinfônica com e sem solistas. Durante esse período Gnattali também se dedicou ao público infantil – compondo as canções e trilhas utilizadas na famosa Coleção Disquinho, que trazia clássicos da literatura em discos de vinil – e trabalha nas TVs Excelsior e Globo, como maestro e arranjador.
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Em 1983, recebeu o Prêmio Shell de música e foi homenageado em concerto no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, apresentando-se como pianista, regente e compositor. A saúde começou a ficar debilitada em 1986, quando sofreu um AVC que o deixou com o lado direito do corpo paralisado. Em 1988, em decorrência de problemas circulatórios, sofreu outro AVC, falecendo no dia 13 de fevereiro. Radamés Gnattali deixou uma extensa obra de concerto, cerca de 400 títulos, além de inúmeras composições populares, com destaque para os choros, estilo de que tanto gostava.
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